Liberdade de imprensa<br>e poder económico

Fernando Correia

A re­cente pro­posta para «re­gular» a co­ber­tura jor­na­lís­tica das pró­ximas elei­ções le­gis­la­tivas apre­sen­tada pelo PSD/​CDS e PS pro­vocou to­madas de po­sição bem re­ve­la­doras do con­texto e das ca­rac­te­rís­ticas da ac­tual re­a­li­dade me­diá­tica na­ci­onal, assim como das ori­en­ta­ções a que obe­decem al­guns dos seus prin­ci­pais pro­ta­go­nistas.

A in­for­mação e a co­mu­ni­cação cons­ti­tuem ter­reno pri­vi­le­giado para uma in­tensa luta ide­o­ló­gica e um con­fronto de in­te­resses de vária na­tu­reza. Ter em conta este facto é uma con­dição es­sen­cial para en­tender e in­tervir na re­a­li­dade em que nos mo­vemos

Sendo certo que a pro­posta cons­ti­tuía, di­gamos, uma ab­surda des­con­for­mi­dade, desde logo no plano jor­na­lís­tico, e sobre a qual não nos vamos aqui de­morar, a ver­dade é que al­guns dos ar­gu­mentos que se lhe con­tra­pu­seram foram bas­tante es­cla­re­ce­dores sobre as con­cep­ções do­mi­nantes entre quem, como dono ou como seu man­da­tário, manda na nossa co­mu­ni­cação so­cial.

Em re­acção à pro­posta logo surgiu uma to­mada de po­sição de duas de­zenas de res­pon­sá­veis edi­to­riais de im­por­tantes ór­gãos de in­for­mação1.

Co­meçam por afirmar que "o pro­jeto (PSD/​CDS-PP e PS), que de­fine as re­gras da co­ber­tura no­ti­ciosa em pe­ríodo elei­toral, viola clara e ob­jec­ti­va­mente os prin­cí­pios es­sen­ciais do jor­na­lismo e a li­ber­dade edi­to­rial". De­fendem que "o exer­cício da ac­ti­vi­dade dos ór­gãos de co­mu­ni­cação so­cial as­senta na li­ber­dade e na au­to­nomia edi­to­rial" e que "o di­reito a in­formar dos jor­na­listas e o di­reito de os ci­da­dãos serem in­for­mados não podem ser con­di­ci­o­nados nem li­mi­tados pelo poder po­lí­tico". Ga­rantem que "não se de­mi­tirão de res­peitar e de exigir res­peito pelos seus di­reitos e de­veres cons­ti­tu­ci­o­nais de in­formar com sen­tido de res­pon­sa­bi­li­dade, le­vando este im­pe­ra­tivo até às úl­timas ins­tân­cias" (itá­licos nossos).

Tudo bem – mas com um ve­e­mente e po­de­roso senão: onde está, no meio de tudo isto, o poder eco­nó­mico? Os di­rec­tores in­vocam, le­gi­ti­ma­mente, os seus «de­veres e di­reitos cons­ti­tu­ci­o­nais». Mas tal in­vo­cação de­veria ser feita por in­teiro. Se é certo que a «li­ber­dade de im­prensa» é um prin­cípio cons­ti­tu­ci­onal, não o é menos que tal prin­cípio ad­quire na lei fun­da­mental um con­teúdo mais vasto, ao es­ta­be­lecer cla­ra­mente a ne­ces­si­dade da «não con­cen­tração da ti­tu­la­ri­dade dos meios de co­mu­ni­cação so­cial» e da sua «in­de­pen­dência pe­rante o poder po­lí­tico e o poder eco­nó­mico» (itá­lico nosso).

É le­gí­timo per­guntar: será que os prin­cí­pios es­sen­ciais do jor­na­lismo e a li­ber­dade e a au­to­nomia edi­to­rial, os de­veres e di­reitos cons­ti­tu­ci­o­nais de in­formar com sen­tido de res­pon­sa­bi­li­dade, serão pos­sí­veis de res­peitar e cum­prir por di­rec­tores de in­for­mação e jor­na­listas em geral, no con­texto de uma co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nada por cri­té­rios mer­can­ti­listas e pelos im­pe­ra­tivos do ne­gócio?

Fran­cisco Pinto Bal­semão, ou­vido à saída de um en­contro com o PSD e o CDS, foi muito claro ao exigir «que nos deixem abordar as cam­pa­nhas elei­to­rais como en­ten­dermos». Fa­lava em nome da Pla­ta­forma dos Media Pri­vados, que reúne os prin­ci­pais grupos eco­nó­micos do sector – isto é, em nome de quem pode e manda.

Ele­vado grau de con­cen­tração

A ver­dade é que a pro­pri­e­dade dos prin­ci­pais ór­gãos de co­mu­ni­cação na­ci­o­nais atingiu um muito ele­vado grau de con­cen­tração. Os cinco mai­ores grupos de media são pro­pri­e­tá­rios de pra­ti­ca­mente todos os ór­gãos de maior im­por­tância e in­fluência, ex­cep­tu­ando o que per­tence à Igreja Ca­tó­lica (grupo Re­nas­cença e im­prensa re­gi­onal) e ao Es­tado (RTP – Rádio e Te­le­visão de Por­tugal e agência Lusa). Su­blinhe-se que a in­fluência dos media sobre as formas de pensar e agir não se exerce apenas através das no­tí­cias, mas também, no­me­a­da­mente, através dos con­teúdos do en­tre­te­ni­mento, na TV mas também na im­prensa. A quan­ti­dade e as ti­ra­gens das re­vistas cor-de-rosa su­plantam de forma avas­sa­la­dora as dos diá­rios e se­ma­ná­rios de in­for­mação…

Em anexo apre­sen­tamos o perfil desses grupos, in­cluindo apenas o que tem a ver di­rec­ta­mente com o sector da co­mu­ni­cação so­cial, e in­di­cando no final o nome de quem en­ca­beça o grupo. Pra­ti­ca­mente todos os ór­gãos men­ci­o­nados estão pre­sentes, com maior ou menor força, nas pla­ta­formas di­gi­tais, e al­guns existem apenas on­line.

Ou­tros ór­gãos com al­guma ex­pressão estão igual­mente as­so­ci­ados a grupos eco­nó­micos, como os jor­nais Diário Eco­nó­mico e Se­ma­nário Eco­nó­mico e a ETV (S.T. & S. F., So­ci­e­dade de Pu­bli­ca­ções Lda), e os jor­nais Sol e i (Newshold). E há, prin­ci­pal­mente, o caso do Pú­blico que, jun­ta­mente com a Rádio Nova, per­tencem, com todo o sig­ni­fi­cado e im­pli­ca­ções que isso tem, a um dos mais po­de­rosos grupos eco­nó­micos na­ci­o­nais (a SONAE, através da SO­NA­ECOM), ainda que a sua pre­sença seja mar­ginal no grupo.

Li­gação es­tru­tural

Sem en­trar em por­me­nores sobre a com­po­sição do ca­pital so­cial de cada em­presa e de cada grupo, fácil é no en­tanto per­ceber – e daí ex­trair as ne­ces­sá­rios ila­ções a nível eco­nó­mico, po­lí­tico e ide­o­ló­gico – a pro­funda li­gação, de na­tu­reza es­tru­tural, entre os media do­mi­nantes e a so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista em que vi­vemos. Através da pro­pri­e­dade, na­tu­ral­mente, mas também, por exemplo, no alar­ga­mento da im­plan­tação destes grupos nou­tras áreas do sector, na sua pro­xi­mi­dade com o ca­pital fi­nan­ceiro e, prin­ci­pal­mente, na sua de­pen­dência da pu­bli­ci­dade

Três destes grupos – Im­presa, Co­fina e Global – são pro­pri­e­tá­rios, em partes iguais, da VASP, a maior dis­tri­bui­dora na­ci­onal de jor­nais e re­vistas. Al­guns deles pos­suem grandes em­presas grá­ficas: é o caso da Global, dona da Na­ve­printer, que im­prime todos os jor­nais do grupo e ou­tros de âm­bito re­gi­onal. A Global e a Im­presa são ac­ci­o­nistas, res­pec­ti­va­mente com 23,6 por cento e 22,35 por cento, da agência de no­tí­cias Lusa, uma das duas em­presas de co­mu­ni­cação so­cial pro­pri­e­dade do Es­tado, ainda que de­tentor de apenas 50,14 por cento.

Quanto à pro­xi­mi­dade ao ca­pital fi­nan­ceiro, re­giste-se uma cons­tante no ca­pital so­cial destes grupos: a pre­sença, di­recta ou in­di­recta, da banca. A maior par­ti­ci­pação di­recta ve­ri­fica-se no Global Media Group, através do Mil­len­nium bcp e do Novo Banco (com 15% cada), mas na Im­presa estão o BPI e o San­tander, na Media Ca­pital a Caixa de Aforros da Ga­liza, na Co­fina o Crédit Suisse e o San­tander.

No que se re­fere à pu­bli­ci­dade, e to­mando como exemplo, ale­a­to­ri­a­mente, Fe­ve­reiro pas­sado, o pri­meiro lugar das em­presas/​grupos in­ves­ti­dores nos media na­ci­o­nais foi ocu­pado pela Uni­lever / Je­ró­nimo Mar­tins (Pingo Doce e Re­cheio), se­guida pela Vo­da­fone. No top 20 (os nú­meros são da Mark­teste/​Media Mo­nitor) fi­guram também ou­tros nomes co­nhe­cidos: Mo­delo Con­ti­nente, Por­tugal Te­lecom, Johnson & Johnson, Da­none, Re­nault, L’O­real, Lidl, Worten-SONAE, NO­VARTIS e Nestlé; e ou­tros menos co­nhe­cidos: Eu­ro­pean Home Sho­ping, Rec­kitt Benc­keiser, Bliss-Repger-Re­pres, Procter & Gamble – trata-se de mul­ti­na­ci­o­nais vo­ca­ci­o­nadas para o co­mércio por grosso, que agregam cen­tenas de marcas com que li­damos di­a­ri­a­mente, aqui e em de­zenas de ou­tros países, re­la­tivas a pro­dutos vá­rios de uti­li­zação do­més­tica li­gados à lim­peza, ali­men­tação, co­zinha, cos­mé­tica, saúde, etc.

Ne­gócio e in­fluência

A co­mu­ni­cação so­cial tem muito poder. Mas o poder maior é o de quem manda na co­mu­ni­cação so­cial. O poder de quem, ge­ral­mente vindo de ou­tras áreas, julgou aqui des­co­brir uma boa opor­tu­ni­dade de ne­gócio – ex­cep­tu­ando, no que se re­fere aos grandes grupos, o caso de Bal­semão, so­bre­vi­vente do tempo, que se pro­longou até aos anos 60, em que a grande im­prensa era pro­pri­e­dade de grupos fa­mi­li­ares tra­di­ci­o­nal­mente li­gados ao sector.

Há pouco mais de uma dé­cada dizia o in­dus­trial Paulo Fer­nandes, pa­trão da Co­fina: «Os media foram uma opor­tu­ni­dade que nos apa­receu, é um sector bas­tante atra­ente porque exige muito menos in­ves­ti­mento de re­po­sição, (…) é pos­sível crescer sem grandes in­ves­ti­mentos. (…) A im­prensa é muito ren­tável, es­can­da­lo­sa­mente ren­tável.» Em re­lação à compra do Cor­reio d Manhã, em 2000, pelo equi­va­lente a cerca de 50 mi­lhões de euros: «Foi um ex­ce­lente ne­gócio, mesmo tendo em conta o preço que se pagou. Foi um preço alto, porque es­tá­vamos numa al­tura em que os preços es­tavam in­fla­ci­o­nados, mas as me­lho­rias que con­se­guimos obter na gestão su­pe­raram as nossas ex­pec­ta­tivas em re­lação à ava­li­ação que tí­nhamos feito.»2

Hoje, pelo menos para al­guns que nela apos­taram, a im­prensa já não será o ne­gócio que pa­recia ser, e por isso dis­cutem a ne­ces­si­dade de en­con­trar novos «mo­delos de ne­gócio». Es­cu­sado será dizer que não se lhes co­nhece ne­nhuma re­flexão sobre ou­tros pe­quenos por­me­nores do ne­gócio, por exemplo os novos de­sa­fios que se co­locam a um jor­na­lismo digno desse nome…

Mas será a co­mu­ni­cação so­cial, em todos os casos, apenas, ou se­quer prin­ci­pal­mente, uma forma de ga­nhar di­nheiro? Bel­miro de Aze­vedo tem per­dido ao longo dos anos mi­lhões de euros com o Pú­blico: será com ne­gó­cios como este que o pa­trão da SONAE fi­gura entre as três mai­ores for­tunas do País?

Paes do Amaral (então à frente da Media Ca­pital), a pro­pó­sito da po­lé­mica, aqui há anos, sobre a pri­va­ti­zação da RTP 2, foi elo­quente: «os media são um ne­gócio», dizia ele. «É assim que os vejo e, estou certo, Pinto Bal­semão também. Mas os media têm também in­fluência e poder, duas coisas que ou­tros ne­gó­cios não têm.» E con­ti­nuava: «É per­fei­ta­mente na­tural que existam lob­bies po­lí­tico-eco­nó­micos in­te­res­sados em com­prar uma te­le­visão. São lob­bies que não estão in­te­res­sados em ga­nhar di­nheiro. Têm ou­tras ra­zões, querem ter in­fluência...».

Re­to­mando uma for­mu­lação já com cerca de uma dé­cada, julgo im­por­tante su­bli­nhar que o pre­do­mínio no sis­tema dos media do factor eco­nó­mico sobre o in­for­ma­tivo, ao mesmo tempo que é um sin­toma do mer­can­ti­lismo (co­mu­ni­ca­ci­onal, jor­na­lís­tico, cul­tural, etc.) do­mi­nante, en­quadra-se também, numa pers­pec­tiva global, na ofen­siva das po­lí­ticas ne­o­li­be­rais, das quais a con­cen­tração da pro­pri­e­dade dos media nas mãos do grande ca­pital é um sus­ten­tá­culo, um am­pli­fi­cador e um ins­tru­mento. A in­for­mação e a co­mu­ni­cação cons­ti­tuem ter­reno pri­vi­le­giado para uma in­tensa luta ide­o­ló­gica e um con­fronto de in­te­resses de vária na­tu­reza. Ter em conta este facto é uma con­dição es­sen­cial para en­tender e in­tervir na re­a­li­dade em que nos mo­vemos.

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1 O texto é as­si­nado pelos di­rec­tores de in­for­mação do Cor­reio da Manhã, Diário de No­tí­cias, Diário Eco­nó­mico, Ex­presso, i, Jornal de Ne­gó­cios, Jornal de No­tí­cias, Lusa-Agência de No­tí­cias de Por­tugal, Ob­ser­vador, Pú­blico, Rádio Re­nas­cença, RDP, RTP, Sá­bado, SIC, SIC No­tí­cias, Sol, TSF, TVI e Visão.

2 Para re­fe­rên­cias das ci­ta­ções feitas ver Jor­na­lismo, Grupos Eco­nó­micos e De­mo­cracia, Ca­minho, 2006, pp 46 a 49.

 

 

Co­fina

Te­le­visão: Cor­reio da Manhã TV (‘cmTV’).

Jor­nais e re­vistas: Cor­reio da Manhã, Re­cord, Jornal de Ne­gó­cios, Destak, Destak Brasil, Metro, Sá­bado, Má­xima, TV Guia, Se­mana In­for­má­tica, Flash!, Vogue, GQ.

Paulo Fer­nandes.

Global Media Group

Jor­nais e re­vistas: Diário de No­tí­cias, Jornal de No­tí­cias, O Jogo, Diário de No­tí­cias da Ma­deira, Aço­riano Ori­ental, Jornal do Fundão, Volta ao Mundo, Eva­sões.

Rádio: TSF.

Jo­a­quim Oli­veira, sendo que desde o ano pas­sado o an­go­lano An­tónio Mos­quito detém a mesma per­cen­tagem de ca­pital (27,5%).

Im­pala

Re­vistas: Maria, Nova Gente, VIP, TV 7 Dias, Ana, Nova Co­zinha, So­lu­ções, Se­gredos Co­zinha, etc. Uma das ca­rac­te­rís­ticas deste grupo é a frequência com que en­cerra e cria pu­bli­ca­ções.

Jac­ques Ro­dri­gues.

Im­presa

Te­le­visão: SIC, SIC No­tí­cias, SIC Ra­dical, SIC Mu­lher, SIC K, SIC In­ter­na­ci­onal, SIC

Caras.

Jor­nais e re­vistas: Ex­presso, Visão, Visão Jú­nior, Visão His­tória, Jornal de Le­tras, Exame, Exame In­for­má­tica, Cour­rier In­ter­na­ci­onal, Blitz, Ac­tiva, Caras, Caras De­co­ração, Te­le­no­velas, TV Mais.

Fran­cisco Pinto Bal­semão.

Media Ca­pital

Te­le­visão: TVI, TVI 24, TVI In­ter­na­ci­onal, TVI Ficção.

Rádio: Rádio Co­mer­cial, M80, Ci­dade FM, Vo­da­fone FM, Smooth, Co­to­nete.

Rosa Cullel, re­pre­sen­tando o ac­ci­o­nista mai­o­ri­tário, a Vertix, pro­pri­e­dade da mul­ti­na­ci­onal es­pa­nhola Prisa (El País, As, Ca­dena Ser, etc.), com forte pre­sença na Amé­rica do Sul.